quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Reflexão para o Dia dos Finados

A realidade da morte no contexto atual e a fé na Vida Futura
Texto de Frei Oton Júnior, ofm.


Anualmente, somos convidados a relembrar aqueles(as) que nos precederam no encontro com o Senhor. Ao mesmo tempo, é uma boa oportunidade para pensarmos sobre a realidade da morte em suas mil faces, ‘da qual homem algum poderá escapar’, como exortava o Santo de Assis, bem como afirmar nossa fé na ressurreição.

Em meados da década de cinqüenta, João Cabral de Melo Neto descreveu de forma lapidar a morte do sertanejo: “E se somos Severinos/ iguais em tudo na vida,/ morremos de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte/ de fome um pouco por dia/ (de fraqueza e de doença/ é que a morte Severina/ ataca em qualquer idade,/ e até gente não nascida)”(Morte e Vida Severina).
Indistintamente, tudo aquilo que é vivo, um dia irá se encontrar com a realidade da morte; porém, alguns agravantes chamam a atenção na sociedade atual, como a violência urbana, os acidentes de trânsito (responsáveis por 10% das mortes de jovens no mundo, conforme a OMS), doenças cardiovasculares, câncer (que em 2008 matou 15,6% da população brasileira; sendo que, em 1999, este índice estava em cerca de 11,4%), além de fatores como o fumo, o álcool, a má alimentação, dentre outras causas.
Em 1995, assim se expressou a Evangelium Vitae: “Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos e entre as classes sociais? Ou na violência inerente às guerras, e ainda antes delas, ao escandaloso comércio de armas, que favorece o torvelinho de tantos conflitos armados que ensangüentam o mundo? Ou então na sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração dos equilíbrios ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção do uso da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis, acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registrar de modo completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as formas, abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!”(EV 10).
O aniquilamento total do ser humano revela uma dimensão que muitas vezes não queremos admitir: tudo aquilo que construímos, todas as empreitadas, todo amor e dedicação...um dia se acabará.
Atualmente, o modo de encarar a morte vem passando por mudanças significativas: ora a banalizamos, como fazem os programas policiais da TV, encarando-a como desprovida de importância; ora a concebemos como realidade ‘obs-cena’ (o que não pode ser encenado, mostrado), um tabu. Tudo aquilo que se refere à morte vem afastado, escondido, negado. Se alguém numa roda de amigos começa a falar de morte, logo outra pessoa pede para mudar de assunto.
Numa sociedade que prega o sucesso, a fama, a aparência narcísica, tudo aquilo que tem a ver com fracasso, perda, frustração, luto, vem soterrado no imaginário, como se assim, seus efeitos fossem amenizados.
Mais forte que a morte
A Boa Notícia cristã, baseada na Ressurreição de seu Mestre e Senhor, aponta para outra realidade, de ‘vida em abundância’. “Diante de uma pessoa morta, somos chamados em toda a nossa dor e em toda a nossa tristeza a lembrar aquilo que o próprio Deus provou com a ressurreição de seu Filho. Somos chamados a nos lembrar de que a morte não é o último passo, mas que depois da morte, há uma ressurreição. As pessoas queridas, cuja morte, deploramos, não estão mais mortas! Elas vivem. Estão vivas, por que Deus as ressuscitou da mesma forma como ressuscitou se Filho Jesus” (BLANK, 2003: 97).
Na morte, encontraremos frente a frente com o Senhor Deus da vida e aquilo que antes víamos confusamente, nos será desvelado, e poderemos optar definitivamente por Seu projeto.
Diferentemente de outras doutrinas, os cristãos creem no Deus de misericórdia e perdão, que acolhe o pecador como o Pai Misericordioso ao filho pródigo. Em vez de um eterno retorno, de muitas reencarnações, um abraço paterno, acolhedor.
Por diversas vezes, a Sagrada Escritura disse algo a respeito da Vida Eterna. No livro da Sabedoria, por exemplo, se diz que “a vida dos justos está na mão de Deus, e nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos parecem ter morrido; sua saída do mundo foi considerada uma desgraça e sua partida do meio de nós, uma destruição, mas eles estão na paz” (Sab 3,1-3). Paulo de Tarso, na carta aos Coríntios, desafiava: “A morte foi tragada pela vitória; onde está, ó morte, a tua vitória? onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Cor 15,55).
A fé cristã se dá na acolhida da vida atual e da vida futura, sem menosprezo de uma ou de outra; pelo contrário, o desejo de encontrar-se com o Senhor nos leva a agir como ele, lembrando o testemunho primitivo de que ‘Jesus andou pelo mundo fazendo o bem’ (At 10,38). A fé na ressurreição nos impele a uma ação efetiva em favor da vida, com atitudes concretas, pois “o ser humano quer viver e viver sem fim, não como mero prolongamento da vida em sua mortalidade, mas como realização de suas virtualidades que se expressam pelo desejo, pela libido, pela utopia e pela esperança contra todas as esperanças” (BOFF, 1991: 144).
Em seu discurso ao início do Concílio Vaticano II, João XXIII insistia que o anúncio cristão “não promete uma felicidade só terrena; mas comunica-lhes os bens da graça divina, que, elevando os homens à dignidade de filhos de Deus, são defesa poderosíssima e ajuda para uma vida mais humana; abre a fonte da sua doutrina vivificante, que permite aos homens, iluminados pela luz de Cristo, compreender bem aquilo que eles são na realidade; a sua excelsa dignidade e o seu fim; e mais, por meio dos seus filhos, estende a toda parte a plenitude da caridade cristã, que é o melhor auxílio para eliminar as sementes da discórdia; e nada é mais eficaz para fomentar a concórdia, a paz justa e a união fraterna (JOÃO XXIII, AAS 54 (1962), 785).
Para Francisco de Assis
O contexto medieval foi marcado pela morte, quer pela insalubridade, quer pelas guerras. As ameaças da condenação eterna ganharam terreno.
É conhecida a forma de Francisco se referir à morte como ‘irmã’. Porém, isso não tira da morte seu aspecto amendrontador: “saibam todos que, onde quer e como quer que morra o homem em pecado mortal sem satisfação, se podia satisfazer e não satisfez, o diabo arrebata sua alma de seu corpo, com tanta angústia e tribulação, como ninguém pode saber, a não ser quem o sofre. E todos os talentos e poder e ciência, que pensava ter ser-lhe-ão tirados. E deixa-o para os parentes e amigos, e eles tomarão e dividirão sua riqueza e dirão depois: ‘Maldita seja sua alma, porque podia dar-nos e conseguir mais do que conseguiu’. Os vermes comem o corpo; e assim perde corpo e alma neste breve século e irá para o inferno, onde será atormentado sem fim” (2Fi 82-85).
Referindo-se ao modo de Francisco pensar a morte, há quem diga que “se conseguiu dominar a morte, isso não quer dizer que ele tenha transformado a sua natureza e feito dela um acontecimento trivial e agradável” (MATURA, 2002:184).
Por sua vez, o modo como ele próprio se defrontou com a morte também deve ser recordado, ainda com mais fôlego: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a Morte corporal, da qual homem algum pode escapar”.
Na Cantata “O Peregrino de Assis”, soa de forma bela o modo de encarar este esta nossa ‘irmã’: “que a nossa irmã morte seja bem acolhida como a gente acolhe o sono, depois de um dia bem ocupado”.
Conclusão
A dura realidade de morte vem preenchida por um sentido maior a partir da experiência de Cristo Jesus, que antes de ter sua vida tirada, a doou, em favor de muitos.
A fé na Ressurreição, longe de nos levar ao menosprezo das realidades terrestres, nos chama ao empenho em favor da vida, não como uma abstração, mas no mais concreto das necessidades humanas.
A vida futura já teve seu início mediante a ressurreição do Filho de Deus, o qual nos amou antes que nós o amássemos, e que na plenitude dos tempos, se encarnou, nascendo de uma mulher, submetido a uma lei, a fim de remir os que estavam sob a lei, para que recebêssemos a sua adoção. ‘A prova de que sois filhos é que Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!’ (Cf. Gl 4, 4-6).
Por fim, relembremos mais uma vez as palavras de Renoldo Blank: “O plano salvífico de Jesus é este: que nele e por meio dele cheguemos a nossa plenificação. Esta, no entanto, não é o resultado de centenas e milhares de vidas, vividas no decorrer de sempre novas reencarnações. Ela é dom e graça de um Deus que ama. De um Deus que se apaixonou por nós e que, por causa disso, nos ressuscitará depois de uma única vida, para que sejamos para sempre unidos a ele. Unidos com aquele que nos ama num êxtase de amor, pelo qual o apóstolo Paulo, balbuciando, só consegue dizer que ‘nem o ouvido ouviu, nem jamais penetrou no coração do homem, o que Deus preparou para aqueles que o amam (1Cor 2,9)”(BLANK, 2003: 96).
Fontes
João XXIII, Discurso de Abertura do Concílio Vaticano II, in AAS 54 (1962), 785-795.
João Paulo II, Evangelium Vitae, 1995.
Leonardo BOFF, «Evangelizar a partir das culturas oprimidas», in Paulo Suess (org.) Culturas e Evangelização, Loyola, São Paulo 1991.
Renold BLANK, Esperança além da Esperança, Paulinas, são Paulo, 2003.
Thaddée MATURA, Francisco de Assis: mensagem de seus escritos, editorial Franciscana, Braga 2002.
http://new.paho.org/bra

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